O passado sempre foi um repositório farto para a composição de atmosferas, cenários, elementos, fundos ou fios de tramas nos diversos gêneros literários. Grandes obras literárias constituem testemunhos importantes de sua época e quando seus autores escolhem o passado como palco de sua escrita, a literatura se coloca como uma forma de reconstrução de um tempo imaginado. Os diversos gêneros literários apresentam as mais variadas formas criativas com as quais a linguagem pode se relacionar com a temporalidade, decorrendo daí profundas implicações estéticas, psicológicas, filosóficas e políticas. A própria historiografia, antes de reivindicar o estatuto de ciência no século XIX, era considerada uma variação de narrativa literária.
O passado nos grandes clássicos da literatura
As grandes guerras, feitos ou fatos heroicos, míticos ou históricos, constituem a identidade de um povo e poderão ser eternizados nas epopeias ou poemas épicos, tais como a guerra de Troia na Ilíada e na Odisseia de Homero (séc. VIII a.C.), para os gregos, ou ainda, na Eneida de Virgílio (séc. I a. C.) para os romanos. Na passagem do Medievo para a Modernidade, o modelo da poesia épica clássica foi retomado pelo movimento artístico chamado de renascimento cultural por poetas do calibre de um Dante Alighieri em a Divina Comédia, publicada no início do século XIV, sintetizando a cosmovisão medieval com base na Suma Teológica de Tomás de Aquino no século XIII. O épico Périplo Africano realizado entre 1497 e 1498 pelo navegador Vasco da Gama, narrado por Camões em Os Lusíadas, é a grande referência desse gênero literário para a língua portuguesa.
Muitos autores do romantismo literário europeu do século XVIII apresentam um medievalismo idealizado como forma de reação ao racionalismo ilustrado. Bebem nos Romances de Cavalaria medievais para compor narrativas que retratam as origens dos povos, das línguas e países da Europa, buscando compor personagens comparáveis ao mítico Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Como não lembrar daquele que é considerado o marco do romance moderno, Dom Quixote (1605) de Miguel de Cervantes. No romantismo brasileiro, indianista, expresso nas obras O Guarani (1857) e Iracema (1865), ambas de José de Alencar, idealiza-se o índio do século XVI, equiparado a um cavaleiro medieval, inspirado também na noção de “bom selvagem” do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
O medievalismo romântico está presente também em outra vertente, a literatura gótica, tangenciando ao gênero de terror/horror, que estreia no século XVIII inglês, com O Castelo de Otranto (1764), de Horace de Walpode, abrindo todo o universo dos segredos do passado, dos manuscritos escondidos, das profecias e maldições povoadas por donzelas e cavaleiros enfrentando fantasmas, bruxas, demônios, vampiros, lobisomens e toda sorte de monstros que corporificam a estética do mau, do feio, do macabro, do sublime nos cenários tétricos e noturnos de castelos ou casarões, igrejas e monastérios, labirintos e florestas, cemitérios e ruínas que posteriormente popularizaram a arquitetura gótica nas animações e no cinema.
O século XIX viu surgir outro tipo de romance ainda mais relacionado com o passado, o Romance Histórico, cujo precursor foi o escocês Sir Walter Scott, gênio por traz de Ivanhoe (1820), que narra a guerra entre saxões e normandos no século XII, obra que contribuiu para perenizar a memória do rei da Inglaterra, Ricardo Coração de Leão e seu irmão e sucessor João Sem Terra. Inspirados no modelo de Walter Scott, outros romances históricos foram extremamente populares em sua época, tais como as obras do francês Alexandre Dumas, autor de nada menos que Os Três Mosqueteiros (1844) e O Conde de Monte Cristo (1844), para citar apenas as obras mais conhecidas em função da popularização trazida pela série de animação e pelo cinema. Outro romance histórico que se transformou em um clássico da literatura universal é Guerra e Paz (1865), do russo Leon Tolstoi, que aborda as guerras napoleônicas em território russo.
O passado na indústria cultural: literatura, cinema, televisão e HQs
No século XX e XXI se desenvolverá a Fantasia e seus subgêneros, momento em que a indústria cultural se apropriará dos Contos de Fadas, sobretudo daqueles que chegaram a nós graças às compilações francesas de Charles Perrault, no século XVII, e alemãs, dos famosos Irmãos Grimm, no século XIX, construindo um gigantesco empreendimento cultural. Além das famosas animações longa-metragem que construíram o império de Walt Disney, como Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio (1940) e Cinderela (1950), os Contos de Fadas servirão de inspiração para outro gênero literário que toma o passado, sobretudo o medieval, como grande quadro de referência, a Alta Fantasia. Praticamente todos os elementos do imaginário folclórico antigo e medieval já estava incorporado nos Contos de Fadas e serão novamente apropriados pela Alta Fantasia: dragões, fadas, elfos, anões, gigantes, gnomos, goblins, grifos, sereias, animais antropomórficos, trolls, bruxas, unicórnios, etc.
A Alta Fantasia, por sua vez, inspirará o surgimento do Role-Playing Game (RPG), uma bem-sucedida experiência de fusão das linguagens da literatura e do teatro, popularizada inicialmente pelo RPG de mesa Dungeons & Dragons (D&D), criação dos estadunidenses Gary Gygax e Dave Arneson em 1974. Vale lembrar que D&D inspirou a criação de uma série de animação homônima, transmitida pelo canal de televisão estadunidense CBS entre 1983 e 1985. No Brasil, a animação D&D recebeu o nome de Caverna do Dragão e estreou em 1986, na Rede Globo, quando a primeira e segunda temporadas foram transmitidas pelo programa Show da Xuxa e depois, em 1994, a TV Colosso transmitiu a terceira e última.
A paternidade da Alta Fantasia é atribuída a J.R.R. Tolkien, um filólogo sul-africano, posteriormente radicado na Inglaterra, autor de O Hobbit (1937) e O Senhor dos Anéis (1954-55), que foram recentemente popularizados no cinema pelas adaptações dirigidas por Peter Jackson entre 2001 e 2014. O modelo da Alta Fantasia de Tolkien inspirou outros grandes autores como o alemão Michel Ende, de A História Sem Fim (1979), também adaptada para o cinema pelo alemão Wolfgang Petersen, em 1984; além do estadunidense George R.R. Martin, autor da série de livros Crônicas de Gelo e Fogo, que começou a ser publicada em 1996, tendo o primeiro volume recebido o nome Game of Thrones, hoje bastante conhecido pela produção da série televisiva do canal HBO, dirigida por David Benioff e D. B. Weiss, transmitida a partir de 2011.
Na Alta Fantasia, podemos reconhecer uma estrutura de relação entre um mundo primário “real” e um mundo imaginado (secundário) onde ocorrerá a essência da narrativa. É para a imaginação desse mundo secundário que o passado pode ser tomado como referência estética e cultural. A exemplo da criação de Tolkien, temos a ausência do mundo primário, há apenas o mundo imaginado de acontecimentos épicos e heroicos, com clara inspiração estética medieval e utilização de elementos significativos do imaginário das culturas nórdica e céltica pré-cristãs. Nos games, o universo de Tolkien recebeu diversos títulos, desde aqueles mais fieis às adaptações do cinema até os mais recentes, que criam outras personagens e histórias nos RPGs de Ação Terra-Média: Sombras de Mordor (2014) e Terra-Média: Sombras da Guerra (2017), desenvolvido pela Monolith Production. O RPG transformou-se em um dos gêneros mais bem-sucedido da indústria de games.
Em outra Alta Fantasia bastante conhecida, do irlandês C. S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, publicadas entre 1950 e 1956, adaptado para o cinema entre 2005 e 2010, vemos a existência de uma passagem (um portal) do mundo primário (real) para o mundo secundário imaginado e fantástico do Reino de Nárnia, o que estabeleceria uma relação entre dois mundos paralelos, que não são coextensíveis. Esse esquema foi adotado na animação Caverna do Dragão e já estava presente em fábulas como As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, criação de Charles Lutwidge Dodgson usando o pseudônimo Lewis Carroll, publicado em 1865, mundialmente popularizada pela animação longa-metragem dos estúdios Disney em 1951.
Para sairmos do quadro de referências medievais dominantes dentro do modelo de Tolkien, temos os exemplos de uso do século XIX inglês da Era Vitoriana (1837-1901) como palco para o romance Drácula (1897) de Bram Stoker, que estabeleceu a estética vampiresca no cinema, series de TV e games. A Era Vitoriana serviu também de inspiração estética para a construção do mundo fantástico da série de livros Harry Potter, da escritora britânica J. K. Rowling, publicados a partir de 1997, também adaptados para o cinema entre 2001 e 2011. Harry Potter é um exemplo de Alta Fantasia que constrói uma relação diferente entre o mundo primário (real) e o mundo secundário (imaginado e fantástico), sendo estes coextensíveis, um mundo-dentro-do-mundo.
A Era Vitoriana e outros períodos históricos também são referências estéticas e culturais recorrentes em praticamente todos os demais subgêneros da fantasia. A Baixa Fantasia se distingui por introduzir elementos mágicos no interior do mundo “real” e não como a acontece na Alta Fantasia, que cria outro mundo fantástico por completo. Dentro desse gênero vamos encontrar a Fantasia histórica, tendo como um dos exemplos mais conhecidos os contos do estadunidense Robert E. Howard, das décadas de 1930 e 1940, criador de Conan, que se transformou no cânone para o subgênero “Espada e Feitiçaria” da Fantasia.
O sucesso comercial desse subgênero é atestado não só pela adaptação cinematográfica Conan, o Bárbaro na década de 1980, o que fez de Arnold Schwarzenegger um ator mundialmente conhecido, como também pelo sucesso da animação He-Man and the Masters of the Universe, de 1983, criação de Mark Taylor, cujo personagem principal foi originalmente pensado como protótipos de action figures para a empresa estadunidense de brinquedos Mattel. He-Man acabou por apresentar uma fusão entre a fantasia “Espada e feitiçaria” inspirada em Conan e a ficção científica, diante do estrondoso sucesso no cinema da saga Star Wars de George Lukas, também do início da década de 1980.
Outros exemplos de gênero híbrido podem ser agrupados na categoria do Romance Histórico Contemporâneo, resultante de um entrelaçamento de esquemas narrativos presentes na ficção histórica, na história romanceada, nas crônicas, na biografia e autobiografia, que tem apresentado bastante sucesso comercial também no cinema e nas séries de televisão. Podemos mencionar as Crônicas Saxônicas, do britânico Bernard Cornwel, publicadas a partir de 2004, abordando o processo da invasão dinamarquesa à Grã-Bretanha e a consequênte resistência do Reino Inglês, nos séculos IX e X, tendo recebido uma adaptação para série de televisão sob título The Last Kingdom, produzida pela Carnival Films e transmitida pela BBC em 2015.
Filmes como Titanic, de James Cameron, em 199, Elizabeth, de Shekhar Kapur, de 1998, ou Gladiador, de Ridley Scott, de 2000, atestam em sequência a força do romance histórico contemporâneo na indústria cultural. Nos games, inspirados na ficção histórica, podemos mencionar o jogo de ação Ryse: Son of Rome de 2013, produção magistral da alemã Crytek Studios, ambientado na Roma imperial. Recentemente houve o lançamento do jogo Kingdom Come: Deliverance (Warhorse Studios, 2018), que deixa de lado os tradicionais elementos da Alta Fantasia e de Baixa fantasia (espada e feitiçaria) para trazer um RPG ambientado no século XIV, primando pela verossimilhança com o período histórico escolhido.
É relevante mencionar ainda outro gênero narrativo importante que se desenvolve ao longo do século XX e trabalhará criativamente com os elementos da fantasia e respectivas referências ao passado, ou seja, as Histórias em Quadrinhos (HQ). No universo das HQs de Super-Heróis, ao menos dois deles tem forte inspiração em elementos históricos. O Arqueiro Verde da Universo DC, criado por Mort Weisinger e Georg Papp, estreou em 1941, inspirado no romance The Green Archer, de Edgar Wallace, publicado em 1923. Tanto o Arqueiro Verde do romance, quanto o da HQ são releituras do mítico herói Robin Hood do século XIII, que dispensa apresentações. Recentemente, Arqueiro Verde foi readaptado na série de televisão, Arrow, da emissora estadunidense The CW, indo ao ar a partir de 2012.
Outro super-herói extraído diretamente do passado é nada menos que Thor, deus da mitologia nórdica, mais precisamente na mitologia da Era Viking, dos séculos I e II. Nos quadrinhos Thor estreou em 1962, criado por Stan Lee, Larry Lieber e Jack Kirby e publicado pela Marvel Comics. Thor também é bastante popular mediante as recentes adaptações para o cinema, recebendo títulos próprios ou como integrante na série Os Vingadores, que vieram a público a partir de 2011. Ainda no mundo das HQs, temos o adorável Asterix, criação dos franceses Albert Uderszo e René Goscinny, em 1959, que recria uma fictícia aldeia gaulesa que resistia à dominação do Império Romano no ano 50 antes de Cristo. O universo dos simpáticos gauleses rendeu 12 adaptações para o cinema (8 animações e 4 de imagem real) além de jogos, brinquedos e um parque temático, situado em Plailly, a 30 km de Paris, capital da França.
Como visto sumariamente até aqui, podemos perceber que a indústria de games se serviu e se serve de uma longa tradição literária e cinematográfica, que toma o passado mítico ou histórico como quadro de referências para a criação de personagens e respectivos mundos, também reconstruídos nos games de diversos gêneros. Vale notar que o próprio desenvolvimento histórico da indústria de games, entendida como um mais um segmento da indústria cultural mais ampla, é contemporâneo ao sucesso comercial dos diversos gêneros da fantasia, tendo muitos títulos best-sellers sido adaptados para o cinema e para os games. Em síntese, o que buscamos argumentar é que, assim como na literatura, no cinema, televisão e nas HQs, também nos games, o passado pode servir de argamassa para a construção de universos espaço-temporais, e nestes, é possível perceber a construção de diferentes relações com o passado.
A indústria de games se desenvolve com algumas especificidades e predominância de alguns gêneros conforme a plataforma que se considere. Há sim, uma trajetória específica dos games nos PCs e outra paralela nos consoles, mais recentemente temos ainda que considerar os jogos nos mobiles. Na seção abaixo, para exemplificar as diferentes formas de apropriação do passado nos títulos atuais, terei o foco nos consoles. Isto não significa que ignoro os gêneros que são mais estabelecidos nos PCs, como jogos de estratégias ao estilo de Civilization e Age of Impires, sucessos desde a década de 1990, que trabalham de forma bem original com a ideia de progresso histórico. Para além, não poderia deixar de mencionar os Massively multiplayer online RPG (MMORPG) ou Multiplayers online battle arena (MOBAs), gêneros que se popularizaram conjuntamente com a internet, muitos deles fortemente inspirados na Alta Fantasia medieval tolkiena.
As diferentes apropriações do passado na atual indústria de games
Um dos exemplos mais notórios de jogos que tomam o passado como elemento central para construção da narrativa é a popular série de ação e aventura Assasssin’s Creed (AC), produzida e publicada a partir de 2007 pela poderosa Ubisoft, estúdio multinacional de matriz francesa. No que tange a aproximação da Ubisoft com temáticas históricas, AC foi antecedido pelo desenvolvimento do não menos famoso Príncipe da Pérsia: as areias do tempo (2003). AC constrói uma inteligente articulação de diferentes gêneros narrativos e elementos de ficção científica, ficção histórica e historiografia.
Propondo a existência de uma tecnologia que permitiria acessar memórias ancestrais (o Animus), o jogador assume o controle de personagens (assassinos) que foram enredados em diferentes tramas, em diferentes momentos históricos (da História sob visão europeia) da secular e silenciosa luta entre duas organizações secretas, a Ordem dos Assassinos e os Templários. A luta entre essas duas organizações secretas teria ocorrido pela descoberta e controle de um conhecimento que poderia fornecer um grande poder. Esse conhecimento teria sido perdido juntamente com a extinção de uma espécie que teria vivido na Terra antes de nós.
O jogo traz muito da atmosfera do livro O Código da Vince, de Dan Brown, que ficou bastante popular a partir de 2003, onde o enredo entrelaça personagens fictícias e personagens históricas, criando a sugestão de que uma “verdadeira história” poderia ter sido ocultada, a exemplo da figura de Leonardo da Vinci em AC II (2009), colaborando ativamente com Ezio Auditore, inclusive no desenvolvimento da arma símbolo dos Assassinos: a lâmina oculta.
As reconstruções das cidades que são palco para os jogos e dos contextos históricos que são pano de fundo das narrativas, são realmente primorosas, respeitando e utilizando o conhecimento historiográfico disponível, muito embora, também possam dar margem para discussões, assim como na própria historiografia. Um exemplo é a reconstrução da figura histórica de Robespierre em AC Unity (2014), tendo como palco a Revolução Francesa. No jogo, o líder da fase da Convenção jacobina é colocado como partícipe de uma conspiração templária, o que não faz muito sentido, mesmo no plano fictício, pois Robespierre foi um revolucionário, o que faria dele mais afinado com a Ordem dos Assassinos. Mais coerente foi a colocação de Karl Marx como colaborador da Ordem dos Assassinos em AC Syndicate (2015). Tendo em vista que, no universo de AC, os Templários desejam a manutenção da “ordem”, podemos identifica-los como defensores do status quo, conservadores, estando a Ordem dos Assassinos, no espectro político oposto, ou seja, no da desconstrução do status quo.
Os jogos da franquia AC, como já dissemos, traz muitas informações sobre pessoas, eventos e locais que realmente existiram, sendo muito comum que jogadores acreditem que aprenderam mais sobre história jogando AC do que na escola, o que é bem possível. Interessante ressaltar que ao jogar nas diferentes cidades reconstruídas em AC, para o deleite dos amantes de História, a experiência fornece uma espécie de “tour histórico virtual”, já que os desenvolvedores normalmente incluem um farto banco de dados, com minúcias biográficas, artísticas e arquitetônicas, evidenciando que o desenvolvimento dos jogos se deu mediante acompanhamento de assessoria histórica especializada.
Vale ressaltar, contudo, que não é intenção dos produtores uma total fidelidade com o passado histórico. Para efeito de composição de uma peça de entretenimento massivo, uma série de liberdades criativas geram distorções com abordagens e elementos anacrônicos do ponto de vista estritamente histórico. Ou seja, AC ou outros jogos não substituem os livros de História, que ainda são mais seguros para o conhecimento do passado. Em AC, podemos afirmar que o tipo de relação com o passado se dá como nos romances históricos, ou seja, temos um grande evento histórico como pano de fundo da trama ficcional principal.
A construção da dimensão espaço-temporal em AC prima pela fidelidade ao conhecimento histórico e a criação ficcional busca a verossimilhança, trazendo a atmosfera geral, os costumes e personagens famosos da época. Entretanto, AC traz também elementos da Alta Fantasia, pois, o Animus funciona como um portal que dá acesso a outro mundo, no caso, não um mundo secundário fantástico inspirado no passado, como no modelo tolkieniano, mas o mundo secundário, que nada mais que o primário (real) no passado (real). Entretanto, traz elementos da ficção histórica “espada e feitiçaria, uma vez que introduz elementos mágicos (ficção científica) nesse mundo passado (real). Vale lembrar que derivaram da série principal de jogos diversos livros e jogos spin-offs que expandem o universo de Assassin’s Creed.
Outro exemplo recente que devemos mencionar é o jogo oriundo da série de contos e romances do escritor polonês Andrzej Sapkowski, que cria mais uma Alta Fantasia de inspiração medieval seguindo os contornos gerais do modelo tolkieniano. Falo de Wiedźmin, traduzido para o inglês The Witcher, e para o português O Bruxo, cujo universo é composto por contos publicados a partir de 1986 e romances a partir de 1994 até 1999. Considerado por muitos o mais relevante jogo produzido nos anos recentes, The Witcher 3, lançado em 2015, com expansões no mesmo ano e em 2016, é uma obra magistral do estúdio polonês CD Project Red. O jogo é o terceiro da série, que iniciou em 2007 com The Witcher, para Windows e OS-X, seguido de The Witcher 2: Assassins of Kings, também para os consoles.
Tomando The Witcher 3 com suporte de análise, temos uma reconstrução estética primorosa dos três grandes períodos medievais. O final da Alta Idade Média é reconstruído na região de Skellige, inspirada nas formas peninsulares e insulares da gelada Escandinávia, parafraseando as disputas entre chefes guerreiros dos clãs germânicos e vikings que viviam da pirataria marítima no norte atlântico do século VIII.
A Idade Média Central, dos séculos XI ao XVIII, marcada pelo desenvolvimento do feudalismo, apresenta em Pomar Branco ou em Velen, uma reconstrução muito fiel da produção agrícola campesina, da vida cotidiana nos feudos e da atividade da aristocracia guerreira na Europa.
A Baixa Idade Média, dos séculos XVI e XV, do renascimento comercial, urbano e cultural, é magnificamente reconstruído no ambiente citadino e portuário de Novigrad, que inclusive é o nome de uma cidade portuária real, localizada na península da Ístria, pertencente à Croácia, mas que no século XVI, havia sido anexada pela República de Veneza, que dividia com Gênova o poder do comércio marítimo no Mar Mediterrâneo. Novigrad faz alusão, por meio de diversas analogias da trama principal, a processos realmente históricos, tais como a Inquisição e as tortuosas alianças e traições políticas entre a nobreza, a burguesia mercantil, e as linhagens reais, quadro geral que marcou o declínio do medievo a passagem para a modernidade.
Na expansão Blood and Wine, o ducado de Toussant é claramente inspirado do Ducado da Borgonha, famosa região vinícola da França, e possivelmente, tal como foi construída a personagem da Duquesa Anna Henrieta, percebesse muitas características da última e verdadeira Duquesa Maria de Valois (1457-1482), a Rica, que herdou o ducado de seu pai aos 20 anos, portadora de um temperamento forte e decidido, mantendo-se solteira.
Portanto, em The Witcher 3 temos outra forma de relação com o passado, onde este serve de inspiração estética e cultural para uma construção com bastante proximidade do mundo primário, um mundo secundário análogo, dentro do modelo da Alta Fantasia, mas sem a pretensão de ser uma reconstrução propriamente histórica, tal como em Assassin´s Creed.
A ficção histórica dentro do modelo da Baixa fantasia, tem sido também uma forte inspiração para a criação de jogos. Como já afirmamos antes, a Baixa Fantasia não cria um mundo fantástico alternativo, mas sim, introduz elementos fantásticos dentro do mundo “real”, ou, dentro de um mundo passado, que foi “real” no passado. Teríamos uma infinidade de exemplos de jogos que poderiam ser enquadrados nessa categoria. Lembrarei do mais recente jogo da desenvolvedora Rare, integrante da Microsoft Studios, que recria em arte cartunesca, inspirada talvez em Monkey Island, criação da LucasArts em 1990, o universo da pirataria dos séculos XV e XVI no jogo Sea of Thieves de 2018. A pirataria tem sido tema recente também no cinema, com a franquia Piratas do Caribe, dirigido por Gore Verbinski e Rob Marshall, que estreou em 2003 e é, também, um exemplo de ficção histórica.
Não poderia abordar a pirataria sem mencionar Assassin’s Creed 4: Black Flag (2014) Assassisn’s Creed Rogue (2015), que para muitos são memoráveis pelas batalhas de galeões, reeditadas nas galeras da antiguidade em AC Origins em 2017, e que serão novamente tema central em Skull and Bones, focado em batalhas navais, com previsão de lançamento para 2019, também produzido pela Ubisoft.
Outra forma que os jogos podem apresentar de se apropriar do passado seria a utilização da iconografia ou a própria história da arte como inspiração criativa. Nesse caso, não é propriamente um período histórico que é tomado como referência, mas sim um gênero artístico ou literário do passado. São exemplos recorrentes nos RPG e jogos de terror a inspiração do gótico medieval e vitoriano, sobretudo nos games de temática vampiresca. Um exemplo de sucesso que bebeu fartamente na fonte gótica, são os jogos RPG de Ação da desenvolvedora japonesa From Software, Demon’s Souls (2009) e os três títulos de Dark Souls lançados entre 2011 e 2016, além de Bloodborn (2015), jogos estes famosos também pelo level design.
Outros exemplos de presença do passado nos jogos atuais são as reconstruções dos cenários históricos das guerras do século XX, mais precisamente a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a Guerra Fria, que despertam tanto interesse em diletantes da história, público este já bastante explorado no cinema e também nos jogos de simulação de combate de guerra ou combate com armas de fogo em outros contextos como o narcotráfico ou terrorismo. Os chamados shooters, seja os em primeira pessoa, fist person shooter (FPS) ou os em terceira, third person shooter (TPS) constituem um gênero fortemente estabelecido da indústria de games.
Esse gênero de jogos também pode apresentar, na montagem de seus cenários históricos, a introdução de elementos de ficção histórica ou ficção científica, seguindo fórmulas que encontramos, por exemplo, nas HQs de Capitão América (Marvel Comics, 1941) ou Mulher Maravilha (DC Comics, 1941). Pois bem, uma distinção importante que há nesse tipo de apropriação bélica do passado, está na ênfase não no contexto histórico em si, mas sim nos equipamentos, armamentos e veículos, em suma, na reconstrução das tecnologias militares de diferentes épocas.
Para citamos exemplos recentes de franquias famosas de shooters, a série Call of Duty da produtora Infinity Ward (adquirida pela Activision), cujo primeiro título é de 1999, tomou como cenário principalmente a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, além de incursões na ficção futurista. Em 2002, tem início a série Battlefield, da Eletronics Arts em parceria com a Digital Ilusions, também teve muitos títulos ambientados na Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria e seu mais recente Batltlefield I de 2017, escolheu como cenário a Primeira Guerra Mundial.
Mais uma vez, temos que lembrar aqui da francesa Ubisoft que, inicialmente em parceria com a desenvolvedora alemã Crytec Studios, apresentou costumeiro requinte histórico também na franquia Far Cry (2004), misturando ficção histórica e ficção científica em diversos cenários geográficos, tais como ilhas tropicais em Far Cry 3 (2012) e savanas africanas em Far Cry 2 (2008). Far Cry 4 (2014) toma como cenário a cadeia montanhosa do Himalaia, inspirando-se na Guerra Civil do Nepal de 1996, e Far Cry Primal (2016), reconstrói o Mesolítico, na Idade da Pedra, 12 mil a.C.
Como visto, esses são alguns exemplos de apropriação das tecnologias do passado para a criação de simulação de combates e podem, também, formular analogias históricas para a criação dos enredos de fundo em jogos FPS ou TPS. Para encerrarmos esse texto, gostaria de chamar a atenção para o impressionante patamar de realismo e beleza que os desenvolvedores de jogos têm atingido na criação dos cenários e mundos abertos para os jogos atuais. A indústria de games, pelas características específicas de integração da linguagem audiovisual com a interatividade, tem produzido experiências singulares de imersão nos passados imaginados e reconstruídos, reatualizando estéticas seculares, servindo-se de inesgotáveis inspirações na literatura, na História, na História da Arte, no cinema, animações e HQs.
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Texto muito bom! Realmente a evolução dos games de mero passatempo até se tornarem formas de linguagem foi uma evolução e tanto nesses últimos 30/40 anos.