É inegável que os vilões causam uma atração peculiar nas narrativas. A densidade psicológica dos arqui-inimigos, quase sempre, é mais intrigante do que a linearidade e transparência ética dos heróis. Até mesmo “os mocinhos” que caminham nas linhas embaçadas das fronteiras entre o certo e o errado, parecem ser mais atraentes, como é o caso de Wolverine ou Deadpool. Um filme dedicado inteiramente ao Coringa, um dos vilões mais populares do universo da DC Comics, era um projeto de sucesso certo. Segundo dados de Box Office Mojo, Joker já arrecadou aproximadamente U$ 745 milhões entre 03 e 24 de outubro.
Vou me dispensar aqui de qualquer ritual de uma pretensa “crítica de cinema”, “análise cinematográfica”, “vereditos” e “reviews” ou qualquer dessas mediocridades arrogantes que tanto circulam na internet, vulgarizando opiniões pasteurizadas no atacado. Também vou me dispensar de julgar a performance de Joaquin Phoenix no papel de Coringa, que como é amplamente notório, ele é um dos grandes atores estadunidenses da atualidade. Também não é minha intenção tratar da constelação de referências ao universo das HQs ou outros filmes que inspiraram essa produção.
Meu objetivo é tratar das reflexões sobre a sociedade atual que este filme proporciona.
O diretor Todd Phillips, que também integrou a equipe de roteiristas, ambicionou realizar um filme que vai muito além da trivialidade com a qual temas políticos são tangenciados nos filmes dedicados aos sucessos das HQs. Um toque feminista é facilmente observável em Mulher-Maravilha (2017) e também em Capitã Marvel (2019). Pantera Negra (2018) chamou a atenção pela ruptura na forma de representar uma estética africana e contrariar o imaginário hegemônico sobre a África. A trilogia de Batman – Cavaleiro das Trevas (2005/2008/2012), dirigida por Christopher Nolan, traz complexas tramas policiais tendo como pano de fundo conspirações e corrupção. Entretanto, nada se aproxima de algo como Coringa, uma espécie de ensaio sociológico e psicanalítico audiovisual.
O que foi realizado nesse filme aproxima-se daquele gênero de cinema que vai muito além do entretenimento puro e simples, sem nenhum demérito, pois, muitas vezes o que queremos é justamente de um entretenimento puro e simples. Mas filmes como Coringa, destacam-se por colocar questões de forma muito contundente. Trata-se de uma forma poderosa de denunciar a percepção das coisas com ampla capilaridade.
Uma exploração sociológica sobre a gênese arquetípica do psicopata
O enredo do filme pode ser descrito como uma narrativa do processo de gestação e “nascimento” do arqui-inimigo de Batman. A forma com a qual esse processo é apresentado, os elementos postos que concorrem e vão sugerindo razões ou justificativas, nos permitem perceber que o filme busca propor uma discussão mais geral e ambiciosa. Qual seja: como se dá a passagem ou transformação de um doente mental em um psicopata? O filme provoca o questionamento sobre a intercorrência dos fatores sociais na produção dos psicopatas. Dito de forma mais abrupta: seria a própria sociedade que produz seus psicopatas?
O contexto mais amplo no qual o enredo se desenrola vai identificando problemas sociais, de forma a sugerir uma descrição de determinações estruturais que se somam para agravar a condição psicológica de Arthur Fleck (nome verdadeiro do Coringa, no filme) até provocar seu completo isolamento social, quando a personagem passa a dar vasão à violência, consumido pelo sentimento de vingança, entregando-se completamente à irracionalidade.
Aqui é o momento quando ele se transforma de fato em Coringa.
Essa matriz descritiva pode ser generalizada, assumindo o psicopata a condição de arquétipo do desviante, do marginalizado potencialmente violento e criminoso. A essa altura, o filme sugere o seguinte questionamento: A sociedade produz os seus próprios criminosos?
O filme descreve uma série de determinações estruturais de marginalização social e facilitadoras da multiplicação da criminalidade e violência. O agravamento da concentração de renda, produzindo uma massa pauperizada ao lado de um pequeno número de milionários. O desmonte da assistência social por parte do Estado, abandono da população de baixa renda à sua própria sorte (políticas privatizantes de caráter neoliberal), levando ao acirramento da contradição dos interesses de classe, favorecendo estatisticamente as vias de salvação individual (criminalidade) ou revolta popular diante do sentimento de injustiça social.
Desvelamento da falácia meritocrática diante da desigualdade estrutural.
A violência doméstica e o abuso sexual na infância, facilitada pela falta de mecanismos de identificação na escola, tais como educação sexual, discussões sobre as questões de gênero, acompanhamento psicológico são outros temas tangenciados. Outro problema grave, que é a questão do acesso facilitado às armas de fogo como fator de aumento do índice homicídios. O mito da autoproteção pela posse de armas pelo cidadão “comum” ou “de bem”, típica propaganda enganosa produzida por lobistas da indústria de armas. Por fim, a violência simbólica da comédia “stand up”, quase sempre politicamente incorreta ao eleger os alvos do discurso sarcástico.
Coringa como metonímia da sociedade contemporânea
A metonímia é uma figura de linguagem que toma a parte pelo todo, ou que usa a parte como forma de exemplificar e se referir ao todo. Ao longo de sua narrativa, o filme constrói uma descrição paralela e alternada entre o agravamento psicológico e físico de Arthur e o acirramento das condições materiais e a disposição potencialmente violenta da revolta popular em Gotham City, inspirada em Nova Iorque do início da década de 1980. A descrição dos processos paralelos e alternados, que se sugerem desde o primeiro momento como intimamente conectados, pode ser intendido com uma descrição da relação entre o indivíduo e a sociedade.
Seja em Arthur, seja em Gotham, o que vemos é a deterioração da racionalidade, a confusão e descontrole dos sentimentos que se fazem fisicamente visíveis, é o ódio que vai acumulando feito o lixo na rua, uma vez que o serviço de limpeza pública está em greve. Tudo caminha como uma gestação crescente do ressentimento diante da desigualdade e injustiça social.
Nada evolui para um projeto coletivo, um movimento social organizado, ao contrário, não vemos referências às instituições clássicas da democracia representativa.
A experiência do filme nos enclausura em uma perspectiva niilista e distópica, tal como é a cultura política hegemônica na atualidade. Diante do fim das utopias, não há mais crença em projetos coletivos de transformação social. Cada qual, atomizado e apartado, consome em sua intimidade os simulacros de felicidade, a alegria falsa que quase denuncia a desesperada angústia, tal como as gargalhadas doentias do Coringa.
Tudo vai culminar na apoteose da loucura e revolta. A rua como vazio de razão, vazio de propósitos, a massa identificada com o psicopata em transe, que encarna a violência como instrumento de libertação do sentimento de angústia. A rua toda é Coringa, sem autocontrole, potencialmente violenta e destrutiva, desforme, pode ser capturada e direcionada para qualquer direção. A revolta não é revolução, a revolta é escárnio feito risadas angustiadas de coringas, não é tomada de consciência dos fundamentos da injustiça. A revolta, pura loucura, tende a se identificar e dar poder ao psicopata! Tão 2013, tão 2015 e tão 2018.
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