Na última E3, a poderosa CD Projekt Red trouxe a público mais detalhes sobre o jogo Cyberpunk 2077, ainda sem uma previsão de lançamento. Na ocasião, afirmaram tratar-se de um ambicioso jogo RPG de mundo aberto, utilizando a perspectiva em 1ª pessoa. Essa notícia foi recebida com um certo espanto e até tristeza por muitos fãs de The Witcher 3, considerado por muitos o melhor jogo já feito pela indústria de jogos digitais, além de ser considerado o responsável pelo auge do prestígio da desenvolvedora polonesa.
The Witcher 3 é um RPG de mundo aberto em 3ª pessoa, cujo protagonista controlado pelos jogadores é o carismático bruxo Gerald de Rívia.
Certa repercussão negativa ocorreu nas redes sociais e muitos vieram em socorro da CD Projekt Red defendendo a pertinência da adoção da perspectiva em 1ª pessoa para a proposta específica do novo jogo. Este texto não tem a pretensão de discutir se a decisão dos desenvolvedores foi correta ou não, o que seria até falta de humildade. Entretanto, em meio aos argumentos, um deles me intrigou bastante e, particularmente, me causa certo estranhamento, seja qual for a firmação de que jogos com perspectiva em 1ª pessoa aumentam a imersão ou seriam mais imersivos.
O estranhamento ocorre pela minha vivência pessoal com jogos, onde raramente eu lembro de ter tido uma experiência mais imersiva em jogos com perspectiva em 1ª pessoa. Ao contrário, jogos em 3ª pessoa, tais como o próprio The Witcher 3 ou outros como a saga Assassin´s Creed são com perspectiva em 3ª pessoa e em minha percepção são exemplos de jogos altamente imersivos.
Diante desse estranhamento, resolvi pesquisar sobre esse tema recorrendo à literatura especializada, ou seja, à produção acadêmica, que constrói a argumentação com base em pesquisas empíricas, utilizando métodos científicos. O que passarei a expor não se trata de opiniões, e sim de conhecimento produzido com lapidação conceitual e rigor analítico.
Essa consulta é fundamental para poder ultrapassar o “achismo” ou opiniões rasas tão comuns em “análises” superficiais.
De que são feitos os jogos digitais?
É possível encontrar uma série de definições ou conceituações de imersão na linguística ou na crítica literária, bem como na crítica audiovisual. Preferi, contudo, trabalhar com definições de pesquisadores cujo objeto de estudo é especificamente os jogos digitais. Farta literatura entente que os jogos digitais são construídos pelo desenvolvimento de um agregado de conceitos gerais ou componentes:
- Narrativa;
- Interatividade;
- Hipertextualidade;
- Imersão.
Comentando brevemente sobre cada um de esses componentes, a dimensão da narrativa diz respeito à representação simbólica de um mundo situado em um tempo e em um espaço, onde existem personagens e acontecimentos logicamente coerentes com uma determinada temática. É evidente que existem diferentes níveis de narratividade em diferentes gêneros de jogos digitais, ou seja, há jogos com maior ou menor ênfase na narrativa.
Alguns autores buscam demonstrar que a narrativa está presente em todas as outras formas da linguagem, mas tem características específicas nos jogos digitais, pois ultrapassa a dimensão apenas de uma representação simbólica, constituindo, em muitos casos, uma simulação simbólica. Haveria muito ainda a tratar sobre a narrativa em geral e a narrativa em jogos eletrônicos, mas não é o nosso foco nesse texto.
A interatividade pode ser conceituada como uma medida para verificar a liberdade do jogador que muda de acordo com a influência deste no jogo (SÁ; ALBUQUERQUE, 2000). Para além, a interatividade pode distinguir vários níveis (do mais baixo até o mais alto) em um jogo, influenciando mais ou menos a linearidade do progresso do jogador, produzindo maior ou menor grau de liberdade de ação do jogador (SANTAELLA, 2004).
A interatividade é um dos elementos que garante a não linearidade da narrativa em jogos digitais, é o que diferencia os jogos digitais de um romance ou um filme, já que nessas outras formas da narrativa não há margem para interferência de quem lê ou assiste. Aqui também haveria mais a esmiuçar, mas vamos adiante.
A hipertextualidade é o conjunto possível de links (ligações) e associações de dados, que permitem a manipulação direta do jogador dentro de um universo maior ou menor de escolhas, decisões, caminhos ou ramificações que configuram a não-linearidade da narrativa (SÁ; ALBUQUERQUE, 2000). Ainda que um jogo tenha um desfecho único ou vários desfechos possíveis, as formas como cada jogador caminhará até eles poderão ser diferentes, comportando certo grau de variação e sensação de escolha e liberdade. Portanto, não temos um único texto linear e sim um texto com ramificações para diversos subtextos possíveis.
O que é imersão?
Dessa forma, chegamos ao componente que estamos buscando entender e discutir: a imersão. Para início da análise, devemos estabelecer alguns pressupostos.
- A imersão é um fenômeno psicológico;
- A imersão é mais ou menos favorecida de acordo com diferentes fatores;
- Por se tratar de um fenômeno psicológico, diferentes fatores podem ser mais ou menos determinantes para diferentes pessoas.
A princípio, a imersão se refere à sensação ou sentimento de estar “presente”, “dentro” do mundo do jogo. Para tanto, há que existir um processo psicológico de projeção ou transferência mental do jogador do mundo real para o mundo virtual do jogo. Alguns fatores podem favorecer esse processo.
1 – Ambiente para jogar que seja isento de elementos que causem distração, que atrapalhem a atenção e foco no gameplay. Portanto, o isolamento físico e psicológico favorece a imersão (WITMER; SINGER, 1998).
2 – Identificação com elementos do jogo, ou seja, deve existir uma conexão entre o ambiente, temática, narrativa, personagens e protagonistas dos jogos. A identificação com esses elementos favorecerá uma sensação de conforto, empatia, um desejo continuado de “estar e se manter” nesse ambiente criado pelo jogo (DANSKY, 2006).
3 – O grau de realidade do ambiente virtual, a proximidade deste com o mundo real favorece a verossimilhança, pois aproximará o mundo criado no jogo com o repertório prévio do jogador. O grau de realidade do ambiente virtual, por sua vez, é composto por aspectos e estímulos visuais, sonoros, comportamentais que podem inclusive almejar simular a realidade (GOMES, 2005).
4 – Uma curva de aprendizado adaptativo adequado, ou seja, um tutorial que permita ao jogador se familiarizar previamente com a mecânica proposta, bem como um level design que permita que o jogador se adapte gradativamente à dificuldade proposta no jogo (DOUGLAS; HARGADON, 2001).
Como dissemos acima, a imersão pode ser entendida como um sentimento de presença. No trabalho de Heeter (1992), a presença em jogos virtuais pode ser dividida em três dimensões. A presença pessoal, a virtual projeção do corpo do jogador para o ambiente do jogo; a presença social, favorecida pela interação com os NPCs ou outros jogadores (multiplayer), por fim, a presença ambiental, favorecida pela forma natural ou realista como o ambiente reage aos atos do jogador.
Para Calleja (2007) é possível distinguir outros fatores e nuances que permitem estabelecer 6 (seis) categorias de imersão:
- Imersão Tática: favorecido pela complexidade do planejamento, o qual o jogador deve realizar para atingir determinado objetivo posto pelo jogo.
- Imersão de Performance: favorecido pelo maior responsividade e precisão no controle do avatar controlado.
- Imersão Afetiva: favorecida pela conexão emocional entre o jogador e os elementos do jogo, seja o avatar, a trama, os outros personagens dentro da narrativa ou as consequências das ações e escolhas.
- Imersão Compartilhada: favorecida pelo grau de interatividade do avatar com os elementos do jogo ou com outros personagens (players ou NPCs).
- Imersão Narrativa: favorecida pelo grau de envolvimento com a história narrada, muito comum em jogos com ênfase narrativa.
- Imersão Espacial: tanto mais favorecida quando maior for a abrangência da visualização do jogador do ambiente do jogo. Quando esta imersão ocorre, o jogador passa a se mover segundo um mapa mental do espaço virtual.
Conclusão provisória
Pelo visto, nenhum dos autores mencionados se referem diretamente à perspectiva em 1ª pessoa como uma variável importante para favorecer a imersão. Ao se limitar na leitura desses autores, podemos concluir provisoriamente que tanto os jogos em 1ª ou 3ª pessoa podem ser mais ou menos imersivos de acordo com diferentes variáveis. Portanto, até que pesquisas apontem com alguma sustentação empírica o inverso, concluímos que afirmar que jogos em 1ª pessoa são mais imersivos é #Fake.
Pessoalmente, acredito que a prática prévia com determinados gêneros de jogos, a familiaridade com mecânicas clássicas, podem também favorecer a imersão. Por exemplo, jogadores com pouca experiência em jogos FPS, provavelmente terão dificuldades de imersão no início. Conheço amigos, inclusive, que se queixam de mal-estar (dor de cabeça, tontura) ao tentar jogar com a perspectiva em 1ª pessoa, estão mais acostumados com jogos em 3ª pessoa.
O que me deixa feliz é que a indústria de jogos digitais apresenta uma grande variedade de jogos, para diferentes tipos de jogadores, de acordo com suas preferências mais recorrentes! Todos estamos razoavelmente bem servidos, então, joguemos!
_________________________________________________________________________
Para a escrita deste artigo, foram usadas as seguintes bibliografias:
CALLEJA, G. Digital game involvement: a conceptual model. Games and Culture, v. 2, n.3, p. 236-26-, 2007.
DANSKY, R. Introduction to game narrative. In: BATEMAN, C (ED.). Game writing – narrative skills for videogames. Boston, Massachusetts: Charles River Media, Cap. 1, p. 1-23, 2006
DOUGLAS, J. Y; HARGADON, a. the pleasures of immersion and engagement: schemas, scripts and the fifth business. Digital Creativity, v.12, n. 3, p. 153-166, 2001.
GOMES, R. The design of narrative as an immersive simulation. In: DiGra 2005 Conference: changing views – worlds in play. Digital Games Reseach Association DiGRA, 2005.
HEETER, C.. Being there: the subjective experience of presence. In: Presence: Teleoperators and Virtual Environments, outono, 1992.
SÁ, S. P. ; ALBUQUERQUE, A.. Hipertextos, jogos de computador e comunicação. Famecos, Porto Alegre, v. 13, n. 3, p. 83-93, Dezembro de 2000.
SANTAELLA, M. L.. Games e comunidades virtuais. In: Pattern Recognition, v. 8, p. 247-260, 2004.
WITMER, B. G.; SINGER, M. G.. Measuring presence in virtual environments: A presence questionnaire. MIT Press, v. 7, n. 3, 1998.
E para aprofundamento do tema em Português, sugiro a leitura do seguinte trabalho:
MENDONÇA, R. L. Imersão e emoção em jogos digitais: uma abordagem a partir de sistemas especialistas, lógica fuzzy e mapas auto-organizáveis. São Paulo, 2012. (Dissertação de mestrado em Engenharia Elétrica – Universidade Presbiteriana Mackenzie).
Se você gostou deste artigo, não deixe de participar através de sugestões, críticas e/ou dúvidas. Aproveitem para assinar o Blog, curtir a Página no Facebook, interagir no Grupo do Facebook, além de acompanhar publicações e ficar por dentro do Projeto Universo NERD, de sorteios, concursos e demais promoções.
< x >
Particularmente não curto jogos em 1ª pessoa… um dos poucos que joguei até o final foram farcry 3 e 4, até porque o gênero shooter assim o exige. Atualmente tenho jogado muito Ark Evolved, e pra mim apesar de ter tanto a opção em 1 e 3ª pessoa, sinto muito mais imersão em 3ª. Talvez fosse interessante a CD fornecer essa opção de com um rolar da bolinha do mouse vc alterar a visão. Assim o jogador decidiria qual melhor momento pra usar ambas visões.
Eu concordo contigo, ter a opção é sempre o melhor! Mas devo comentar que joguei um pouco de Follout 4 e achei a opção em 3 pessoa meio estranha. Quando o jogo é pensado e projetado especificamente para a 3 pessoa, creio ser mais adequado!