Esse jogo chamou minha atenção desde seu breve aparecimento para o Xbox na E3 de 2018. Chamou a atenção primeiramente pelo título que remete ao conceito abstrato de solidão, combinado com a ideia de vastidão do oceano.
Já é comum afirmar que os jogos, na atualidade, ultrapassam a pretensão simplista de proporcionar apenas entretenimento banal. Tanto o desenvolvimento técnico quanto a acuidade da expressividade artística fazem dos jogos eletrônicos a vanguarda da linguagem audiovisual na sociedade contemporânea.
Quando falamos de vanguarda na indústria de jogos, estamos falando dos produtores e desenvolvedores que possibilitam a experimentação, a fuga dos modelos já consolidados de sucesso comercial. São eles que arriscam em terrenos inexplorados da linguagem e jogabilidade.
Esse é o fascinante mundo dos estúdios independentes, que nos entregam os carismáticos e intrigantes jogos “indies”, muitas vezes, portadores de experiências inesperadas e marcantes. Jogar Sea of Solitude, lançado no último dia 05 de Julho, é uma oportunidade de deixar as armas ou as espadas de lado por três ou quatro horas, para experimentar um mergulho em um belíssimo mundo metafórico.
Entretanto, como em todo oceano, haverá tormentas. Não é a primeira vez que um desenvolvedor resolve transformar os dramas de sua vida pessoal em um jogo de tipo autobiográfico. Lembremos aqui de That Dragon, Cancer, jogo de 2016, onde os desenvolvedores, pai e mãe, narram sua luta contra o câncer do filho, falecido em 2014.
É importante que exista essa possibilidade de criação de jogos que rompam com os modelos mais comuns, os quais muitas vezes, com um custo relativamente baixo de produção, resultam em verdadeiras obras de arte. Portanto, iniciativas como o ID@Xbox e a EA Originals, que financiam pequenos estúdios devem ser louvadas, por revelarem novos talentos e por trazerem esses jogos ao público mais amplo.
Sea of Solitude foi financiado pelo programa EA Originals, antecedido por títulos do quilate de um Unravel, Fe e A way out. É um jogo de inspiração autobiográfica, afirma a roteirista e diretora de criação, Cornelia Geppert, que também é CEO do estúdio alemão Jo-Mei Games:
Sea of Solitude é, de longe, o projeto mais artístico e pessoal que jamais criei. Às vezes é um desafio enorme mergulhar fundo nos seus próprios sentimentos, como os temores mais primitivos, anseios e raiva. Mas ao mesmo tempo, é o mais gratificante poder expressar esses sentimentos para as outras pessoas por meio da arte.
Imagine a solidão de alguém à deriva em um bote em vasto oceano. Cornelia quer relatar um período de sua vida no qual se sentiu profundamente solitária. Com a alma cercada pelo horizonte infindo de céu e água, resta o mergulho ao fundo de si, nas memórias, nos sempre confusos sentimentos. Lá nesse fundo, aquilo que tentamos esconder, conter, evitar que venha à tona.
Toda a ambientação e enredo do jogo constitui uma alegoria do processo psicanalítico. O processo de compreender as pulsões, dores e traumas inscritos no inconsciente (representado pelo que está submerso ou recoberto de gelo) para que este possa ser trazido para o consciente (representado por aquilo que emergiu e está à vista), para que assim ocorra o processo de cura do sofrimento psíquico.
Ao passo de cada capítulo (ou seria sessão?), a protagonista Kay vai fazendo emergir os cenários alagados, derretendo as geleiras, sempre acompanhada pelo mostro à espreita, ameaçando a engolir.
O jogo traz também uma representação alegórica da estrutura psíquica composta pelo Id, Ego e Superego. Os diálogos e interações apresentam muito dessa negociação interior, por vezes sofrida, entre o desejo, a razão e a culpa. A dificuldade de lidar com os sentimentos pode produzir monstros dos quais buscamos fugir, pode nos fazer reconhecer nesses monstros, nos tornar esses monstros.
Nesse caminho de libertação ou psicanálise, Kay terá de enfrentar as memórias, mágoas e traumas recolhendo-as em sua mochila, metáfora da bagagem da vida, dos difíceis relacionamentos humanos, com o irmão, os pais e o namorado. Sea of Solitude é um jogo que narra de forma belíssima a jornada de alguém que luta para deixar de ser um monstro e reencontrar sua humanidade.
É um jogo para fruição estética sem desafios quanto à dificuldade, de jogabilidade simples e instintiva, contando com uma trilha sonora muito agradável. Seu único ponto negativo, para nós lusófonos, é o fato de não termos sido prestigiados por uma tradução em português. Mas creio que em Espanhol ou com Inglês (intermediário) seja possível apreciar o jogo sem grandes prejuízos.
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