Escrever e relembrar esse tema se faz muito importante nesses tempos em que vivemos o império dos extremismos. É possível observar, de forma mais aguçada nas redes sociais, a forma apaixonada (não racional) com a qual inúmeras pessoas defendem aguerridamente sua adesão à determinadas ideologias, as quais, embora fabricadas deliberadamente por grupos de interesse, sejam estes de mercado ou políticos, são assumidos pelas pessoas como ponto de vistas absolutamente pessoais e, portanto, consideradas imunes à críticas ou equivalentes entre si.
Esses extremismos apresentam-se inúmeras vezes como manifestações de natureza psicológica que podemos facilmente enquadrar em variações de fanatismos.
O fanatismo, no senso comum, é normalmente atrelado ao tema da religião, sendo que este, talvez, seja um dos tipos mais comuns e específicos de fanatismo, o fanatismo religioso. A própria linguagem que podemos utilizar para descrever essas manifestações do comportamento fanático utiliza muitos vocábulos oriundos do universo religioso.
O fanatismo religioso
O fanático religioso desenvolve uma relação obsessiva com as divindades, objetos de culto ou preceitos de sua religião. É observável em todas as religiões no mundo. A obsessão caracteriza-se por um apego exagerado e potencialmente perigoso. Pode trazer danos ao fanático, como nos famosos casos de suicídios coletivos ou problemas de sociabilidade mais gerais, dificultando a convivência, uma vez que o fanático religioso tende a ter uma visão de mundo muito restrita, dentro apenas do espectro da sua religião, podendo apresentar comportamento hostil àqueles que não comungam de sua religião.
Quando o fanatismo religioso se atrela ou se transforma em ideologia política, temos um processo de manipulação política de massas fanatizadas, radicalizadas, tendentes a se verem representados e seguir cegamente líderes autoritários, que usam do discurso e símbolos religiosos para camuflar os interesses políticos escusos. Nesses casos, o desdobramento do fanatismo político-religioso se materializa em diversas formas de intolerância e atos de desrespeito aos direitos humanos universais. Ao atingir alto grau de intolerância e violência, o fanatismo religioso pode ser pivô de guerras entre países e até mesmo guerras civis.
O fanatismo político
Não é apenas no campo da religião que a patologia da obsessão e dos extremismos podem se manifestar. Outro campo bastante comum, hoje bastante visível nas redes sociais, é o fanatismo político. De forma geral, se apresenta como faccionismo partidário, uma confusão entre a instituição democrática partidária e o espírito de facção. Manifesta-se como adesão cega à determinadas doutrinas, sistemas ideológicos e culto à lideranças.
Quase sempre o fanatismo político desdobra-se em movimentos de massa tendentes ao extremismo e desrespeito aos princípios democráticos e aos direitos humanos, levando à obsessões persecutórias a minorias sociais.
O fanatismo político tem um dos exemplos mais notórios em suas variações fascistas. O nazifascismo na Alemanha, por exemplo, na década de 1930 e 1940, foi capaz de perseguir judeus, homoafetivos e testemunhas de Jeová, resultando na chaga do holocausto, responsável pelo assassinato de mais de 6 milhões de seres humanos nos campos de concentração. Também o stalinismo na União Soviética (1922-1953) foi responsável por estatísticas ainda mais nefastas de milhões de executados e deportados para o sistema Gulag (campos de concentração soviéticos) por motivos políticos. Os extremismos de direita ou esquerda são hábeis na construção simbólica de líderes que passam a ser objeto de culto de natureza religiosa, figuras tratadas como messias, salvadores, aos quais as massas depositam sua crença em dias melhores.
O fanatismo da indústria cultural
Também são famosos os casos de fanáticos por artistas, por times esportivos, por filmes ou séries, um comportamento que muitas vezes vai além de um comportamento de fã, isto é, ter por algum artista, time ou produto cultural, uma admiração especial. Em muitos casos, temos a construção de uma relação patológica, pois se transforma em idolatria, a elevação do objeto da idolatria a patamares idealizados de superioridade e estima sem justificação racional. É possível observar uma projeção e dissolução da individualidade e subjetividade do fã na imagem do ídolo.
Tudo parece justificável para poder estar próximo, ter um contato, receber um autógrafo, estar nos lugares mais próximos em um show ou jogo, e para isso conseguirem, se submetem à uma espécie de autoflagelação de sua própria dignidade, a exemplo de pessoas que dormem dias em uma fila para ser um dos primeiros a entrar em um show, por exemplo.
Como sinais de alerta, vemos pessoas que passam a colecionar compulsivamente objetos, revistas, tudo aquilo que esteja relacionado ao objeto da obsessão, podendo levar a prejuízos em sua vida financeira. Em casos mais agudos, fanáticos podem desenvolver o desejo de possuir concretamente o objeto da idolatria, forçando um relacionamento impossível, buscando romper com o relacionamento platônico, submetendo-se a uma humilhação pela própria deliberação adoentada.
O fanatismo por marcas
Mais comuns na indústria de tecnologia, a sociedade atual apresentou um novo tipo de fanatismo, ou seja, os fanáticos por marcas. A exemplo do fanatismo esportivo, onde temos a rivalidade entre times de futebol no Brasil, por exemplo, temos os chamados fanboys típicos da indústria de games, pessoas que transformam a marca do seus videogame em objeto de culto e adoração, dedicando várias horas do dia, nas redes socias, para defendem que o seu videogame é melhor que o videogame de outra marca. De forma mais geral, os fanboys são uma versão mais aguda dos chamados lovermarks, fãs de determinadas marcas, muito comuns na indústria de tecnologia.
São famosos os exemplos de fãs que se submetem a ficar dias em um fila, dormindo no chão, para poder adquirir as primeiras unidades do novo Iphone, no dia do lançamento. Recentemente, no Brasil, ocorreu a mesmo tipo fila para se adquirir uma entrada para participar de uma festa no stand da marca Xbox, na feira Brasil Game Show.
É possível também ver o esforço de muitos lovermarks em buscar de alguma forma atrelar sua imagem às marcas. Mesmo não tendo com essas empresas nenhum tipo de relação profissional ou atividade remunerada em função da marca, os lovermarks dedicam horas curtindo, divulgando, fazendo propaganda gratuita, fazendo montagens gráficas atrelando sua imagem à marca, tentando usar a marca como uma espécie de escada para conquistar notoriedade entre os consumidores. No Brasil tem sido comum que os lovermarks busquem ser reconhecidos como “influencers”, “produtores de conteúdo”, “streamers”, uma série de atividades que não estabelecem de fato uma relação de trabalho como a marca, salvo raras exceções.
Na maioria dos casos, são lovermarks que buscam dar uma aparência profissional à uma dedicação que pode revelar traços de fanatismo, uma vez que essa busca implica, muitas vezes, no ataque à própria dignidade, ao se dedicarem a replicar, seguir e propagar tudo o que é relacionado à marca, o fazendo como um trabalho não remunerado. Outro ataque à dignidade é o trabalho diligente de buscar se aproximar via adulação das pessoas públicas que trabalham de fato nos segmentos no qual atua determinada marca. As redes sociais transparecem claramente a dedicação diuturna dos lovermarks em curtir, mencionar, propagar tudo o que os representantes reais das marcas manifestam.
O que mais espanta é o ambiente de naturalização dessas formas de submeter a dignidade dos consumidores que cruzam essa linha da admiração para o fanatismo. Espanta ainda, a resistência e forma hostil de reação dos fanáticos ao denunciarmos seu fanatismo. Só mesmo uma educação da subjetividade que se atenha às formas simbólicas de submissão da dignidade poderá desfazer essa banalização e naturalização das diversas formas, agudas ou sutis, de fanatismos na sociedade contemporânea.
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